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MANIFESTO DA NAÇÃO PORTUGUEZA AOS SOBERANOS E POVOS
DA EUROPA, DADO EM LISBOA A 15 DE DEZEMBRO DE 1820.

(DO EXEMPLAR OFFICIAL IMPRESSO.)

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A Nação Portugueza, animada do mais sincero e arDezembro dente desejo de manter as relações politicas e commerciaes que até agora a têem ligado a todos os Governos e Povos da Europa, e tendo ainda mais particularmente a peito continuar a merecer na opinião e conceito dos homens illustrados de todas as Nações a estima e consideração que nunca se recusou ao caracter leal e honrado dos Portuguezes; julga de indispensavel necessidade offerecer ao publico a succinta, mas franca exposição das causas que produziram os memoraveis acontecimentos ha pouco succedidos em Portugal, do verdadeiro espirito que os dirigiu, e do unico alvo a que tendem as mudanças que se têem feito e pretendem fazer na fórma interna da sua Administração; e confia que esta exposição, rectificando as erradas idéas que porventura se hajam concebido dos referidos acontecimentos, merecerá a benevola attenção dos Soberanos e dos Povos.

Toda a Europa sabe as extraordinarias circumstancias que no anno de 1807 forçaram o Senhor D. João VI, então Principe Regente de Portugal, a passar com a Sua Real Familia aos Seus Dominios transatlanticos; e postoque esta resolução de Sua Magestade se julgou então da mais reconhecida vantagem para a causa geral da Liberdade Publica da Europa, ninguem comtudo deixou de prever a critica situação em que ficava Portugal por esta ausencia do seu Principe; e os factos ulteriores provaram demonstrativamente que esta previdencia não era vã e temeraria.

Portugal, separado do seu Soberano pela vasta extensão dos mares, privado de todos os recursos de suas possessões ultramarinas, e de todos os beneficios do commercio pelo

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bloqueio de seus portos, e dominado no interior por uma força inimiga que então se julgava invencivel, parecia haver Dezembro tocado o ultimo termo da sua existencia politica, e não dever mais entrar na lista das Nações independentes.

Em tão apurada crise, este Povo heroico não perdeu nem a honra nem o valor nem a fidelidade ao seu Rei; porque estes sentimentos não lhe podiam ser arrancados do coração pela violencia das circumstancias, nem pela força prepotente do inimigo. Elles se manifestaram effectivamente da maneira mais energica, logo que se offereceu conjuncção opportuna. Os Portuguezes, com o auxilio dos seus Alliados, conquistaram á custa dos mais penosos sacrificios a sua propria existencia politica, restituiram com generosa lealdade ao seu Monarcha o Throno e a Corôa; e a Europa imparcial ha de confessar (ainda que nem sempre se tenha feito esta justiça) que a elles deve tambem em grande parte os triumphos que depois alcançou em beneficio da liberdade e independencia dos Thronos e dos Povos.

Qual fosse porém a situação interna de Portugal depois de circumstancias tão novas, de esforços tão extraordinarios, e de um transtorno tão universal e transcendente, mais facil é concebe-lo do que exprimi-lo.

A ruina da sua povoação, começada pela emigração dos habitantes que seguiram o seu Principe, ou procuraram escapar á suspeitosa desconfiança ou à perseguição systematica do inimigo, augmentou-se pelas duas funestas invasões de 1809 e 1810, e pelas perdas inevitaveis de uma dilatada e porfiosa guerra de sete annos.

O commercio e a industria, que nunca podem devidamente prosperar senão à sombra benefica da paz, da segurança e da tranquillidade publica, tinham sido não só desprezados e abandonados, mas até parece que de todo destruidos pela illimitada franqueza concedida aos vasos estrangeiros em todos os portos do Brazil; pelo desastroso Tratrado de 1810; pela consequente decadencia das fabricas e manufacturas nacionaes; pela quasi total extincção da marinha mercante e militar, e por uma falta absoluta de todo o genero de providencias, que protegessem e animassem estes dois importantissimos ramos da prosperidade publica.

A agricultura, base fundamental da riqueza e força das

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Nações, privada dos braços que lhe roubára o exercito e a Dezembro morte; destituida dos capitaes que a sustentam, e que talvez se haviam empregado em objectos de mais instante necessidade; desamparada do alento e vigor vital que costuma dar-lhe a industria nacional, e o giro activo do commercio, tanto interno como externo, jazia em mortal abatimento, e sómente offerecia ao espectador admirado o triste quadro da fome e da miseria.

A sensivel diminuição das rendas publicas causada pela ruina da povoação, do commercio e da industria, pela perda irrevogavel dos grandes cabedaes que o inimigo extorquíra violentamente das mãos dos Portuguezes, e pelas excessivas despezas da guerra, obrigando a Nação a contrahir novas e avultadas dividas, para cuja satisfação eram desiguaes os seus recursos, acabou de dar o ultimo golpe no credito publico, já vacillante pela escandalosa malversação dos agentes fiscaes, e ainda mais pelo errado systema de administração.

Se os Portuguezes não amassem e respeitassem o seu Principe e a Sua Augusta Dynastia com uma especie de amor e adoração quasi religiosa, se não quizessem receber da sua só justiça e beneficencia as reformas e melhoramentos publicos, que um tal estado de cousas imperiosamente exigia, mui facil lhes seria n'aquella epocha pôr limites ao poder, ou dictar-lhe condições accommodadas a tão urgentes circumstancias. Elles não ignoravam seus direitos; a tendencia geral da opinião, dirigida pelas luzes do seculo e sobejamente manifestada entre os povos mais civilisados da Europa, os convidava a fazer uso d'esses direitos, que os seus maiores haviam já reconhecido e exercitado em occasiões menos forçosas; o exercito victorioso e triumphante apoiaria tão justas pretenções, e a Nação seria hoje livre, ou certamente menos desditosa.

Porém o caracter dos Portuguezes nunca soube desmentir-se. Elles quizeram antes esperar tudo do seu Principe, do que dar á Europa, ainda afflicta das passadas desgraças, o espectaculo de uma Nação insoffrida e inquieta, ou parecer que abusavam da facilidade e opportunidade das circumstancias para se mostrarem revoltosos où menos submissos. O soffrimento silencioso e pacifico de seus males foi a base de seus procedimentos; a confiança nas reconhe

cidas virtudes do Principe, o fundamento de suas esperan

ças.

Mas, é forçoso dize-lo! estas esperanças foram perfeitamente baldadas, e aquelle soffrimento foi levado ao ultimo termo a que parece poder chegar a paciencia de uma Nação briosa, cheia do sentimento de suras desgraças, e não ignorante dos meios de remedia-las.

Não é preciso para prova d'esta penosa verdade renovar agora aqui o triste quadro da situação progressivamente decadente de Portugal em todos os ramos de sua administração, nos seis annos que têem decorrido desde a paz geral da Europa até o presente. A Europa toda ou o tem presenciado ou o tem ouvido recontar com magua, e os Augustos Soberanos das differentes Nações não podem deixar de ter sido informados de tamanha desventura pelos Seus Ministros ou Agentes Diplomaticos, que havendo lido na Historia o esplendor, a gloria e a grandeza a que em outros tempos chegaram os Portuguezes, terão sem duvida admirado, e não poucas vezes lamentado, o incomprehensivel abatimento a que se acha reduzido este Povo,' que nos favores e beneficios da natureza não cede a nenhum outro Povo da Europa.

A sua povoação, já exhausta pelos motivos que ficam indicados, continuou a ser depauperada pela forçada remessa para o Brazil de alguns milhares de homens, que depois de terem exposto as suas vidas pela Patria e pelo Throno, e de haverem merecido descansar em tranquilla paz no seio de suas familias, ou gosarem no seu paiz natal o premio de seu zelo e valor, foram continuar na America do Sul os duros trabalhos da guerra, de uma guerra que fazendo-se a tamanha distancia de Portugal, parece que sómente sobre este Reino tem descarregado seus pesados golpes, atacando por muitos modos as fontes essenciaes do seu vigor, e expondo-o ao mesmo tempo ás emprezas de uma Nação visinha e poderosa, sempre rival, e agora estimulada, e até (em sua opinião) offendida e aggravada.

O commercio, em vez da protecção solícita, que a sua situação demandava, e que ainda poderia conservar-lhe algum alento de vida, e resuscita-lo pouco a pouco do mortal lethargo a que se achava reduzido, não obteve senão ra

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ras e mesquinhas providencias, que não sendo o resultado Dezembro de combinações judiciosas sobre o verdadeiro estado comparativo das relações commerciaes dos differentes Povos da Europa, nem ligadas entre si e dependentes de um systema geral adaptado ás presentes circumstancias, ou faziam cada vez mais difficeis e complicadas as suas transacções, ou até cediam em prejuizo directo do commercio nacional, transportando todas as suas vantagens ás mãos dos estrangeiros, e desviando do gyro publico os capitaes que n'elle deviam empregar-se.

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A industria não foi mais favorecida, nem era de esperar que a sua sorte fosse mais feliz. Os Portuguezes viram e soffreram que as suas fabricas e manufacturas fossem destruidas e quasi de todo anniquilladas; que os productos do seu trabalho não podessem supportar a concorrencia dos estrangeiros; que os moveis mais insignificantes de suas casas, os vestidos e roupas do trajo mais ordinario e usual, as proprias camisas e sapatos que vestem e calçam, lhe fossem trazidos de fóra, deixando innumeraveis artifices e officiaes na ociosidade e na miseria. Os Portuguezes viram e soffreram que os seus vasos mercantes lhe fossem roubados por amigos e inimigos; que andassem expostos aos insultos dos piratas e fossem por elles apresados até á vista de suas proprias fortalezas. Os Portuguezes viram e soffreram... mas para que é renovar aqui tão profundas e sensiveis maguas? Para que é recordar males tão notorios, e tão universalmente sentidos?... Digam-n'o os proprios estrangeiros; digam-n'o os mesmos que têem tirado proveito da espantosa indifferença ou frouxidão do Governo Portuguez, e que não poucas vezes repetiam com honrada franqueza que este bello paiz era digno de melhor sorte.

A agricultura, no meio de tamanho abandono de todos os interesses publicos, não era natural que obtivesse a particular attenção e desvelo, que por sua reconhecida influencia sobre a felicidade das Nações lhe é devido. Peja-se o brio Portuguez de confessar haver recebido da generosidade de uma Nação estrangeira tenues soccorros a beneficio da classe a mais util e a mais miseravel dos seus habitantes; soccorros, que não podendo produzir utilidade alguma real, nem pelo seu valor, nem pelo modo da sua distribuição, sómente

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